quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

LAPLANTINE, François. "Uma ruptura metodológica: a prioridade dada à experiência pessoal do 'campo'"

 

LAPLANTINE

Área: antropologia

Tema(s): método: experiência pessoal de campo; abordagem antropológica; condições sociais do discurso antropológico; observador e objetividade em campo;

 

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução Marie-Agnès Chauvel; prefácio Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Clefs pour L’antrhopologie 1988), pp. 149-173.

 

 

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1 - Uma ruptura metodológica: a prioridade dada à experiência pessoal do “campo”

- característica da pesquisa antropológica: “... observação direta dos comportamentos sociais a partir de uma relação humana.”

- a observação do antropólogo é diferente da observação de outras disciplinas: o antropólogo observa comunicando-se com os homens, partilhando sua existência de modo durável (Griaule, Leenhart) ou transitório;

- a etnografia procura “... impregnar-se dos temas obsessionais de uma

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sociedade, de seus ideais, de suas angústias. O etnógrafo é aquele que deve ser capaz de viver nele mesmo a tendência principal da cultura que estuda.”

- “Assim, a etnografia é antes a experiência de uma imersão total, consistindo em uma verdadeira aculturação invertida, na qual, longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifestações exteriores (Durkheim), devo interiorizá-la nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos.”

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- características da prática etnológica: 1 - distanciamento em relação a seu objeto; 2 - capacidade de encontrar explicação aos problemas apresentados; 3 - evita seguir uma programação rígida e estrita, em consequência da especificidade do modo de conhecimento que persegue;

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2 - Uma inversão temática: o estudo do infinitamente pequeno e cotidiano

- a história e a sociologia clássica dão prioridade de estudo à sociedade global, às formas de atividades instituídas, já a abordagem etnológica privilegia o que estas outras disciplinas deixam como “resíduo”:

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o universo microssocial, o pequeno e o cotidiano, as condutas mais habituais, os gestos mais simples;

- o campo dos etnólogos é o dos grupos de pequenas dimensões; se ele tem que estudar grandes grupamentos, ele procurará encontrar neles suas unidades mínimas de organização social;

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- “Em suma, seus objetos de predileção serão os grupos sociais que se situam mais no exterior da sociedade global do observador: os que qualificamos de marginais: camponeses, bretões, feiticeiros do Berry, adeptos de seitas religiosas...”

- sociedades grandes ou pequenas podem ser campo de estudo para o etnólogo: “E as diferenças entre os modos de vida e de pensamento são tão localizáveis nas nossas sociedades (constituídas de múltiplos subgrupos extremamente diversificados, e nos quais várias ideologias estão em concorrência) quanto nas sociedades qualificadas de ‘tradicionais’.”

- o etnólogo se interessa pela fonte de oralidade, do que não é escrito, segundo Lévi-Strauss: “...não é tanto porque os povos que estuda são incapazes de escrever, mas porque aquilo que o interessa é diferente de tudo que os homens pensam habitualmente fixar na pedra e no papel.”

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- as ciências humanas contemporâneas passam por um período de renovação: elas vão deixando de se concentrar somente no material teórico de suas análises e passam a enxergar, através dos vestígios de humanidade presentes neles, o homem escondido sob as múltiplas maneiras de olhar;

- “Mas é sobre tudo na história, ao meu ver, que assistimos a um deslocamento radical do campo da curiosidade. Trata-se de ir do público para o privado, do Estado para o parentesco, dos ‘grandes homens’ para os anônimos, e dos grandes eventos para a vida cotidiana.”

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- Uma exigência: o estudo da totalidade

- um esforço da pesquisa antropológica é tentar levar tudo em conta;

- “escreve Mauss (1960), ‘o homem é indivisível’ e ‘o estudo do concreto’ é ‘o estudo do completo’.”

- para o antropólogo é problemático especializar-se,

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pois ele lança mão de uma série de recursos de outras disciplinas, que são parciais, e tenta não parcelar sua análise e realizar seu trabalho; “O parcelamento disciplinar comporta, de fato, no horizonte científico contemporâneo, um risco essencial: o de um desmantelamento do homem em produtor, consumidor, cidadão, parente...”, o que leva as ciências humanas a especializar-se em situações da vida humana;

- a antropologia corre o risco de se perder no esforço da pluridisciplinaridade e depois costurar os retalhos recortados; “Pessoalmente, a antropologia me parece ser o antídoto não filosófico de uma concepção tayloriana da pesquisa, que consiste em: 1) cumprir sempre a mesma tarefa, ser o espe-

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cialista de uma única área; 2) tentar, de uma maneira pragmática, modificar, ou até transformar os fenômenos que se estuda. O drama das ciências humanas contemporâneas é a fratura entre uma atitude extremamente reflexiva (a da filosofia ou da moral), mas que corre o risco de cair no vazio, dada a fraca positividade de seus objetos de investigação, e uma cientificidade extremamente positiva, mas pouco reflexiva, por estar baseada no parcelamento de territórios e, voltarmos a isso, sobre uma forma de objetividade que as próprias ciências exatas descartaram há muito tempo.”

- “A prática da antropologia finalmente, baseada sobre uma extrema proximidade da realidade social estudada, supõe também, paradoxalmente, um grande distanciamento (em relação à sociedade à qual pertenço).”

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- “Se olharmos mais de perto, esta última disciplina [a filosofia] não é mais hoje um pensamento da totalidade dando-se como objetivo compreender os múltiplos aspectos do homem. Como escreve Lévi-Strauss, apenas três formas de pensamento são, no mundo contemporâneo, capazes de responder a essa definição: o islamismo, o marxismo e a antropologia.”

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4 - Uma abordagem: a análise comparativa

- a problemática maior da antropologia é a da diferença, o que pede uma descentração radical do observador e de sua sociedade em relação à sociedade que observa;

- o antropólogo precisa dissimulada ou deliberadamente romper o estado de etnocentrismo;

- quando olhamos uma sociedade e a comparamos com a nossa, somos capazes de visualizar aquilo que não suspeitávamos em nós; exemplos: a ênfase de saudação ao pai da criança e a couvade,

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a inauguração de um edifício e os rituais tradicionais de apropriação de um espaço;

- a abordagem comparativa, se confunde com a própria antropologia, é bastante ambiciosa;

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- uma forma de comparatismo: o evolucionismo: “... ordena fatos colhidos dentro de um discurso que se apresenta como histórico.”

- se o objetivo da antropologia cultural é comparar os comportamentos humanos em sua diversidade, em áreas geográficas diferentes, não se atendo ao tempo, mas sim à extensão no espaço, a irredutibilidade de cada cultura impede a comparação;

- o que interessa ao antropólogo são as variações da cultura, mas ele tem que considerar que estas variações devem obedecer certo número de invariações, pois é daí que ele pode estabelecer relações

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e efetuar seu trabalho de comparação;

- o antropólogo nunca pode perder de vista a consideração de que a humanidade é “plural”;

- a análise comparativa não é o primeiro instrumento de trabalho do antropólogo, ele se serve antes da coleta de dados e da descrição etnográfica e depois passa à análise lógica da sociedade que estuda, etnologia; depois disto é que “... poderá interrogar-se sobre a lógica das variações da cultura (antropologia)”.

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- na atualidade, o trabalho de análise comparativa se concentra nos costumes, comportamentos, instituições inseridos em seu contexto, fazendo parte de um sistema de relação;

- a tarefa passa pela descrição etnográfica, pela análise etnológica até se descobrir o que Lévi-Strauss denomina “estrutura inconsciente”, o que é sempre variável de um grupo a outro;

- a análise comparativa não estuda fatos empíricos em si, mas os sistemas de relações construídos pelo pesquisador como “... hipóteses operatórias, a partir destes fatos. Em suma,

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- as diferenças nunca são dadas, são colhidas pelo etnólogo, confrontadas umas com as outras, e aquilo que é finalmente comparado é o sistema das diferenças, isto é, dos conjuntos estruturados.”

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5 - As condições de produção social do discurso antropológico

- “A antropologia nunca existe em estado puro.” - ela não pode ser isolada de seu contexto;

- toda análise antropológica é situada: “Seu atestado de nascimento inscreve-se em uma determina época e cultura. Em seguida, transforma-se, em contato com as grandes mudanças sociais que se produzem, e se torna, um século depois, praticamente irreconhecível.”

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- exemplos: a antropologia evolucionista tendia a justificar as práticas colonizadoras civilizatórias da época vitoriana, já a antropologia norteamericana é notadamente anticolonialista: os Estados Unidos nunca tiveram colônias, só minorias étnicas, e são formados por uma pluralidade de culturas;

- “Esses exemplos bastam para nos convencer de que a antropologia é o estudo do social em condições históricas e culturais determinadas.”

- toda observação é determinada por um contexto social;

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- “Nosso pertencer e nossa implicação social, longe de ser um obstáculo ao conhecimento científico, podem pelo contrário, a meu ver, ser considerados como um instrumento. Permitem colocar as questões que não se colocavam em outra época, variar as perspectivas, estudar objetos novos.”

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6 - O observador, parte integrante do objeto de estudo

- o antropólogo pode pretender uma “neutralidade” de observação em campo, pensando assim colher dados “objetivos”, sem marcas pessoais, mas agindo assim ele corre o risco de afastar-se da objetividade característica da antropologia;

- insistir neste modelo é sinal de insuficiência da própria prática, pois o antropólogo não pode esquecer-se do estudo da totalidade, que exige uma integração social do observador com o observado;

- é possível somente distinguir observador e observado, mas não dissociá-los: “Nunca somos testemunhas objetivas observando objetos, e sim sujeitos observando outros

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sujeitos.”

- qualquer situação criada pelo antropólogo, no grupo que ele observa, causará uma perturbação no grupo, o que acabará por perturbar a ele mesmo;

- a análise do antropólogo deve também levar em conta as “... motivações extracientíficas dos observador e da natureza da interação em jogo.”, visto que no estudo da antropologia, os antropólogos são observadores de si mesmos;

- há fatos que causam estranheza ao antropólogo: exemplo: a hajba (em árabe: claustração, trancamento) Tunísia - ritual de fechamento da noiva, isolamento do universo masculino, tratamento de beleza e alimentação...

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... a facilidade de alguns homens e mulheres no Brasil de entrar em transe e se comunicar com entidades ancestrais e espirituais... são situações nas quais o antropólogo põe em cheque os próprios valores culturais e se pergunta sempre sobre a origem de seus julgamentos;

- o modelo de observação “objetivista” provém da física

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de até final do séc. XIX, mas já foi abandonado pelos físicos: “É a crença de que é possível recortar objetos, isolá-los, e objetivar um campo de estudo do qual o observador estaria ausente, ou pelo menos substituível.”

- “Ora, uma das tendências das ciências humanas contemporâneas é eliminar duplamente o sujeito: os atores sociais são objetivados, e os observadores estão ausentes ou, pelo menos, dissimulados. Essa eliminação encontra sempre sua justificação na ideia de que o sujeito seria um resíduo não assimilável a um modo de racionalidade que obedeça aos critérios da ‘objetividade’, ou, como diz Lévi-Strauss, de que a consciência seria a ‘inimiga secreta das ciências do homem’.”

- a física moderna reverte este modelo: “Heisenberg mostrou que não se podia observar um elétron sem criar uma situação que o modifica. Disso tirou (em 1927) seu famoso ‘princípio da incerteza’, que o levou a reintroduzir o físico na própria experiência da observação física.”

- é com Devereux (em 1938) que este princípio será aplicado também à etnologia: o antropólogo perturba o sujeito e o ambiente que observa, mas também sofre os efeitos desta perturbação, este efeito não é mais considerado como

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- obstáculo a ser neutralizado, mas como uma grande fonte de conhecimento;

- “A análise, não apenas das reações dos outros à presença deste [do etnólogo], mas também de suas reações às reações dos outros, é o próprio instrumento capaz de fornecer à nossa disciplina vantagens científicas consideráveis, desde que se saiba aproveitá-lo.”

 

 

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