LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução Marie-Agnès Chauvel; prefácio Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Clefs pour L’antrhopologie 1988).
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4 . Os
pais fundadores da antropologia - Boas e Malinowski
Se
existiam no final do século XIX homens (geralmente missionários e
administradores) que possuíram um excelente conhecimento das populações no meio
das quais viviam - é o caso de Codrington, que publica em 1891 uma obra sobre
os melanésios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas observações sobre
os aborígines australianos, ou de Junod, que escreve A vida de uma Tribo
Sul-africana (1898) - a etnografia propriamente dia só começa a existir a
partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar
no campo sua pesquisa, e que esse trabalho de observação direta é parte
integrante da pesquisa.
A
revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terço do
século XX é considerável: ela põe fim à repartição das tarefas, até então
habitualmente entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue
ao papel subalterno de provedor de informações e o pesquisador erudito, que,
tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e interpreta - atividade nobre!
- essas informações. O pesquisador compreende a partir desse mo-
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-mento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o recebem " e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições' de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do século XVI II e até o missionário ou o administrador do século XIX. residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e informadores: este último termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez ut11a atividade ao ar livre, levada. como ;diz Malinowski, "ao vivo", em uma "natureza imensa, virgem e aberta".
Esse
trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, longe de ser visto como um modo
de conhecimento secundário servindo para ilustrar uma tese, é considerado como
a própria fonte de pesquisa. Orientou a partir desse momento a abordagem da
nova geração de etnólogos que, desde os primeiros anos do século XX. realizou
estadias prolongadas entre as populações do mundo inteiro. Em 1906 e 1908,
Radc1iffe-Browl1 estuda os habitantes das ilhas Andaman. Em 1909 e 1910.
Seligman dirige uma missão no Sudão. Alguns anos mais tarde, Malinowski volta
para a Grã-Bretanha, impregnado do pensamento e dos sistemas de valores que
lhe revelou a população de um minúsculo arquipélago melanésio. A partir daí, as
missões de pesquisas etnográficas e a publicação das obras que delas resultam
se seguem em um ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundadores da
antropologia inglesa, estuda os Todas da Índia; após a Primeira Guerra Mundial,
Evans-Pritchard estuda os Azandés (trad. franco 1972) e os Nuer (trad. franco
1968); Nadel, os Nupes da Nigéria; Fortes, os Tallensi; Margaret Mead, os
insulares da Nova Guiné. etc.
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Como não é
possível examinar, dentro dos limites trabalho, a contribuição desses
diferentes pesquisadores na elaboração da etnografia e da etnologia
contemporânea, dois entre eles, a meu ver os mais importantes, deterão nossa
atenção: um americano de origem alemã: Franz Boas; o outro, polonês
naturalizado inglês: Bronislaw Malinowski.
Boas
(1858-1942)
Com ele
assistimos a uma verdadeira virada da prática antropológica. Boas era antes de
tudo um homem de campo. Suas pesquisas, totalmente pioneiras, iniciadas,
notamo-lo, a partir dos últimos anos do século XIX (em particular entre os
Kwakiutl e os Chinook de Colúmbia Britânica), eram conduzidas de um ponto de
vista que hoje qualificaríamos de microssociológico. No campo, ensina Boas, tudo
deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das casas até as notas
das melodias cantadas pelos Esquimós, e isso detalhadamente, e no detalhe do
detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição mais meticulosa, da retranscrição
mais fiel (por exemplo, as diferentes versões de um mito, ou diversos ingredientes
entrando na composição de um alimento).
Por outro
lado, enquanto raramente antes dele as sociedades tinham sido realmente
consideradas em si e para si mesmas, cada uma dentre elas adquire o estatuto de
uma totalidade autônoma. O primeiro a formular com seus colaboradores (cf. em
particular Lowie, 1971) radical e mais elaborada das noções de origem e de reconstituição
dos estágios[1],
ele mostra que um costume só tem significação se for relacionado ao contexto particular
no
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qual se
inscreve. Claro, Morgan e, muito antes dele, Montesquieu tinham aberto o
caminho a essa pesquisa cujo objeto é a totalidade das relações sociais e dos
elementos que a constituem. Mas a diferença é que, a partir de Boas, estimasse
que para compreender o lugar particular ocupado por esse costume não se pode
mais confiar nos investigadores e, muito menos nos que, da
"metrópole", confiam neles. Apenas o antropólogo pode elaborar uma monografia,
isto é, dar conta cientificamente de uma microssociedade, apreendida em
sua totalidade e considerada em sua autonomia teórica. Pela primeira
vez, o teórico e o observador estão finalmente reunidos. Assistimos ao nascimento
de uma verdadeira etnografia profissional que não se contenta mais em coletar
materiais à maneira dos antiquários, mas procura detectar o que faz a unidade
da cultura que se expressa através desses diferentes materiais.
Por outro
lado, Boas considera, e isso muito antes de Griaule, do qual falaremos mais
adiante, que não há objeto nobre nem objeto indigno da ciência. As piadas de um
contador são tão importantes quanto a mitologia que expressa o patrimônio
metafísico do grupo. Em especial, a maneira pela qual as sociedades
tradicionais, na voz dos mais humildes entre eles, classificam suas atividades
mentais e sociais, deve ser levada em consideração. Boas anuncia assim a constituição
do que hoje chamamos de "etnociências".
Finalmente,
ele foi um dos primeiros a nos mostrar não apenas a importância, mas também a necessidade, para o
etnólogo, do acesso à língua da cultura na qual trabalha. As tradições que
estuda não poderiam ser-lhe traduzidas. Ele próprio deve recolhê-las na língua
de seus interlocutores[2].
Pode
parecer surpreendente, levando em conta o que foi dito, que Boas, exceto entre
os profissionais da antropologia, seja praticamente desconhecido. Isso se deve
principalmente a duas razões:
p. 79
1)
multiplicando as comunicações e os artigos, ele nunca escreveu nenhum livro
destinado ao público erudito, e os textos que nos deixou são de uma concisão e
de um rigor ascético. Nada que anuncie, por exemplo, a emoção que se pode
sentir (como veremos logo) na leitura de um Malinowski; ou que lembre o charme
ultrapassado da prosa enfeitada de um Frazer;
2)
nunca formulou uma verdadeira teoria, tão estranho era-lhe o espírito de
sistema; e a generalização apressada parecia-lhe o que há de mais distante do
espírito científico. Às ambições dos primeiros tempos - quero falar dos afrescos
gigantescos do século XIX, que retratam os primórdios da humanidade mas
expressam simultaneamente os primórdios da antropologia, isto é uma
antropologia principalmente - sucedem, com ele, a modéstia e a sobriedade.
De
qualquer modo, a influência de Boas foi considerável. Foi um dos primeiros
etnógrafos. À sua preocupação de precisão da descrição dos fatos observados,
acrescentava-se a de conservação metódica do patrimônio recolhido (foi conservador
do museu de Nova Iorque). Finalmente, foi, enquanto professor, o grande
pedagogo que formou a primeira geração de antropólogos americanos (Kroeber,
Lowie, Sapir, Herskovitz, Linton... e, em seguida, R. Benedict, M. Mead). Ele
permanece sendo o mestre incontestado da antropologia americana na primeira
metade do século XX.
Malinowski (1884 - 1942)
Malinowski dominou incontestavelmente a cena antropológica, de 1922, ano de publicação de sua primeira obra, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, até sua morte, em 1942.
1) Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a
p. 80.
viver
com as populações que estudava e a recolher seus materiais de seus idiomas,
radicalizou essa compreensão por dentro, e -para isso, procurou romper ao
máximo os contatos com o mundo europeu.
Ninguém
antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto, como ele fez no decorrer de
duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentalidade dos outros, e em
compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonalização, o que
sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é nossa.
Boas procurava estabelecer repertórios exaustivos, e muitos entre seus
seguidores nos Estados Unidos (Kroeber, Murdock...) procuraram definir
correlações entre o maior número possível de variáveis. Malinowski considera
esse trabalho uma aberração. Convém pelo contrário, segundo ele, conforme o
primeiro exemplo que dá em seu primeiro livro, mostrar que a partir de um único
costume, ou mesmo de um único objeto (por exemplo, a canoa trobriandesa -
voltaremos a isso) aparentemente muito simples, aparece o perfil do conjunto de
uma sociedade.
2)
Instaurando uma ruptura com a história conjetural (a reconstituição
especulativa dos estágios), e também com a geografia especulativa (a teoria
difusionista, que tende, no início do século, a ocupar o lugar do
evolucionismo, e postula a existência de centros de difusão da cultura, a qual
se transmite por empréstimos), Malinowski considera que uma sociedade deve ser
estudada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde a
observamos. Medimos o caminho percorrido desde Frazer, que foi no entanto
o mestre de Malinowski. Quando perguntávamos ao primeiro por que ele próprio
não ia observar as sociedades a partir das quais tinha construído sua obra,
respondia: "Deus: me livre!". Os Argonautas do Pacífico Ocidental,
embora tenha sido editado alguns anos apenas após o fim da publicação de O Ramo
de Ouro, com um prefácio, notamo-lo, do próprio Frazer. adota uma abordagem
rigorosamente inversa: analisar de uma forma intensiva e contínua uma
microssociedade
p. 81
sem
referir-se a sua história. Enquanto Frazer procurava responder à pergunta:
"Como nossa sociedade chegou a se tornar o que é?"; e respondia
escrevendo essa "obra épica da humanidade" que é O Ramo de Ouro, Malinowski
se pergunta o que é uma sociedade dada em si mesma e o que a torna viável para
os que a ela pertencem, observando-a no presente através da interação dos
aspectos que a constituem.
Com
Malinowski, a antropologia se torna uma "ciência" da alteridade que
vira as costas ao empreendimento evolucionista de reconstituição das origens
da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares características
de cada cultura. O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas é que os
costumes dos Trobriandeses, tão profundamente diferentes dos nossos, têm uma
significação e uma coerência. Não são puerilidades que testemunham de alguns
vestígios da humanidade, e sim sistemas lógicos perfeitamente elaborados.
Hoje, todos os etnólogos estão convencidos de que as sociedades diferentes da
nossa são sociedades humanas tanto quanto a nossa, que os homens e mulheres que
nelas vivem são adultos que se comportam diferentemente de nós, e não
"primitivos", autômatos atrasados (em todos os sentidos do termo) que
pararam em uma época distante e vivem presos a tradições estúpidas. Mas nos
anos 20 isso era propriamente revolucionário.
3) A
fim de pensar essa coerência interna, Malinowski elabora uma teoria (o funcionalismo)
que tira seu modelo das ciências da natureza: o indivíduo sente um certo
número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função a de
satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamentais. Cada uma realiza
isso elaborando instituições (econômicas, políticas, jurídicas,
educativas...), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem,
cada uma a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas
necessidades.
[1] Da qual Radcliffe·Brown e Malinowski tirarão as consequências teóricas: não é mais possível opor sociedades "simples" e “complexas", sociedades "inferiores" evoluindo para o “superior", sociedades "primitivas" a caminho da “civilização". As primeiras não são formas de organizações originais das quais as segundas teriam derivado.
[2] Sobre a relação da cultura, da língua e do etnólogo, cf. particularmente, após Boas, Sapir (1967) e Leenhardt (1946).
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