segunda-feira, 15 de abril de 2024

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia - Os pais fundadores da antropologia - Boas e Malinowski

 

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução Marie-Agnès Chauvel; prefácio Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Clefs pour L’antrhopologie 1988).

 

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4 . Os pais fundadores da antropologia - Boas e Malinowski

 

Se existiam no final do século XIX homens (geralmente missionários e administradores) que possuíram um excelente conhecimento das populações no meio das quais viviam - é o caso de Codrington, que publica em 1891 uma obra sobre os melanésios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas observações sobre os aborígines australianos, ou de Junod, que escreve A vida de uma Tribo Sul-africana (1898) - a etnografia propriamente dia só começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua pesquisa, e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa.

 

A revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é considerável: ela põe fim à repartição das tarefas, até então habitualmente entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subalterno de provedor de informações e o pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e interpreta - atividade nobre! - essas informações. O pesquisador compreende a partir desse mo-

 

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-mento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o recebem " e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições' de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do século XVI II e até o missionário ou o administrador do século XIX. residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e infor­madores: este último termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez ut11a atividade ao ar livre, levada. como ;diz Malinowski, "ao vivo", em uma "natureza imensa, virgem e aberta".

 

Esse trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, longe de ser visto como um modo de conhecimento secundário servindo para ilustrar uma tese, é considerado como a própria fonte de pesquisa. Orientou a partir desse momento a abordagem da nova geração de etnólogos que, desde os primeiros anos do século XX. realizou estadias prolongadas entre as populações do mundo inteiro. Em 1906 e 1908, Radc1iffe-Browl1 estuda os habitantes das ilhas Andaman. Em 1909 e 1910. Seligman dirige uma missão no Sudão. Alguns anos mais tarde, Malinowski volta para a Grã-Breta­nha, impregnado do pensamento e dos sistemas de valores que lhe revelou a população de um minúsculo arquipélago melanésio. A partir daí, as missões de pesquisas etnográficas e a publicação das obras que delas resultam se seguem em um ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundado­res da antropologia inglesa, estuda os Todas da Índia; após a Primeira Guerra Mundial, Evans-Pritchard estuda os Azandés (trad. franco 1972) e os Nuer (trad. franco 1968); Nadel, os Nupes da Nigéria; Fortes, os Tallensi; Margaret Mead, os insulares da Nova Guiné. etc.

 

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Como não é possível examinar, dentro dos limites trabalho, a contribuição desses diferentes pesquisadores na elaboração da etnografia e da etnologia contemporânea, dois entre eles, a meu ver os mais importantes, deterão nossa atenção: um americano de origem alemã: Franz Boas; o outro, polonês naturalizado inglês: Bronislaw Malinowski.

 

Boas (1858-1942)

 

Com ele assistimos a uma verdadeira virada da prática antropológica. Boas era antes de tudo um homem de campo. Suas pesquisas, totalmente pioneiras, iniciadas, notamo-lo, a partir dos últimos anos do século XIX (em particular entre os Kwakiutl e os Chinook de Colúmbia Britânica), eram conduzidas de um ponto de vista que hoje qualificaríamos de microssociológico. No campo, ensina Boas, tudo deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos Esquimós, e isso detalhadamente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição mais meticulosa, da retranscrição mais fiel (por exemplo, as diferentes versões de um mito, ou diversos ingredientes entrando na composição de um alimento).

 

Por outro lado, enquanto raramente antes dele as sociedades tinham sido realmente consideradas em si e para si mesmas, cada uma dentre elas adquire o estatuto de uma totalidade autônoma. O primeiro a formular com seus colaboradores (cf. em particular Lowie, 1971) radical e mais elaborada das noções de origem e de reconstituição dos estágios[1], ele mostra que um costume só tem significação se for relacionado ao contexto particular no

 

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qual se inscreve. Claro, Morgan e, muito antes dele, Montes­quieu tinham aberto o caminho a essa pesquisa cujo objeto é a totalidade das relações sociais e dos elementos que a constituem. Mas a diferença é que, a partir de Boas, estimas­se que para compreender o lugar particular ocupado por esse costume não se pode mais confiar nos investigadores e, muito menos nos que, da "metrópole", confiam neles. Ape­nas o antropólogo pode elaborar uma monografia, isto é, dar conta cientificamente de uma microssociedade, apreen­dida em sua totalidade e considerada em sua autonomia teórica. Pela primeira vez, o teórico e o observador estão finalmente reunidos. Assistimos ao nascimento de uma ver­dadeira etnografia profissional que não se contenta mais em coletar materiais à maneira dos antiquários, mas procura detectar o que faz a unidade da cultura que se expressa através desses diferentes materiais.

 

Por outro lado, Boas considera, e isso muito antes de Griaule, do qual falaremos mais adiante, que não há objeto nobre nem objeto indigno da ciência. As piadas de um con­tador são tão importantes quanto a mitologia que expressa o patrimônio metafísico do grupo. Em especial, a maneira pela qual as sociedades tradicionais, na voz dos mais humil­des entre eles, classificam suas atividades mentais e sociais, deve ser levada em consideração. Boas anuncia assim a cons­tituição do que hoje chamamos de "etnociências".

 

Finalmente, ele foi um dos primeiros a nos mostrar não apenas a  importância, mas também a necessidade, para o etnólogo, do acesso à língua da cultura na qual trabalha. As tradições que estuda não poderiam ser-lhe traduzidas. Ele próprio deve recolhê-las na língua de seus interlocutores[2].

 

Pode parecer surpreendente, levando em conta o que foi dito, que Boas, exceto entre os profissionais da antropo­logia, seja praticamente desconhecido. Isso se deve princi­palmente a duas razões:

 

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1) multiplicando as comunicações e os artigos, ele nunca escreveu nenhum livro destinado ao público erudito, e os textos que nos deixou são de uma concisão e de um rigor ascético. Nada que anuncie, por exemplo, a emoção que se pode sentir (como veremos logo) na leitura de um Malinowski; ou que lembre o charme ultrapassado da prosa enfeitada de um Frazer;

 

2) nunca formulou uma verdadeira teoria, tão estranho era-lhe o espírito de sistema; e a generalização apressada parecia-lhe o que há de mais distante do espírito científico. Às ambições dos primeiros tempos - quero falar dos afres­cos gigantescos do século XIX, que retratam os primórdios da humanidade mas expressam simultaneamente os primórdios da antropologia, isto é uma antropologia principalmente - sucedem, com ele, a modéstia e a sobriedade.

 

De qualquer modo, a influência de Boas foi considerável. Foi um dos primeiros etnógrafos. À sua preocupação de precisão da descrição dos fatos observados, acrescentava-se a de conservação metódica do patrimônio recolhido (foi conservador do museu de Nova Iorque). Finalmente, foi, enquanto professor, o grande pedagogo que formou a primeira geração de antropólogos americanos (Kroeber, Lowie, Sapir, Herskovitz, Linton... e, em seguida, R. Benedict, M. Mead). Ele permanece sendo o mestre incontestado da antropologia americana na primeira metade do século XX.

 

Malinowski (1884 - 1942)

 

Malinowski dominou incontestavelmente a cena antropológica, de 1922, ano de publicação de sua primeira obra, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, até sua morte, em 1942.

 

1) Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a

 

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viver com as populações que estudava e a recolher seus ma­teriais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por dentro, e -para isso, procurou romper ao máximo os contatos com o mundo europeu.

 

Ninguém antes dele tinha se esforçado em penetrar tan­to, como ele fez no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentalidade dos outros, e em compreen­der de dentro, por uma verdadeira busca de despersonaliza­ção, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é nossa. Boas procurava estabelecer repertórios exaustivos, e muitos entre seus seguidores nos Estados Unidos (Kroeber, Murdock...) procuraram definir correlações entre o maior número possível de variáveis. Ma­linowski considera esse trabalho uma aberração. Convém pelo contrário, segundo ele, conforme o primeiro exemplo que dá em seu primeiro livro, mostrar que a partir de um único costume, ou mesmo de um único objeto (por exemplo, a canoa trobriandesa - voltaremos a isso) aparentemente muito simples, aparece o perfil do conjunto de uma sociedade.

 

2) Instaurando uma ruptura com a história conjetural (a reconstituição especulativa dos estágios), e também com a geografia especulativa (a teoria difusionista, que tende, no início do século, a ocupar o lugar do evolucionismo, e pos­tula a existência de centros de difusão da cultura, a qual se transmite por empréstimos), Malinowski considera que uma sociedade deve ser estudada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde a observamos. Me­dimos o caminho percorrido desde Frazer, que foi no entanto o mestre de Malinowski. Quando perguntávamos ao primeiro por que ele próprio não ia observar as sociedades a partir das quais tinha construído sua obra, respondia: "Deus: me livre!". Os Argonautas do Pacífico Ocidental, embora tenha sido editado alguns anos apenas após o fim da publicação de O Ramo de Ouro, com um prefácio, notamo-lo, do próprio Frazer. adota uma abordagem rigorosamente inversa: anali­sar de uma forma intensiva e contínua uma microssociedade

 

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sem referir-se a sua história. Enquanto Frazer procurava res­ponder à pergunta: "Como nossa sociedade chegou a se tornar o que é?"; e respondia escrevendo essa "obra épica da humanidade" que é O Ramo de Ouro, Malinowski se pergunta o que é uma sociedade dada em si mesma e o que a torna viável para os que a ela pertencem, observando-a no presente através da interação dos aspectos que a constituem.

 

Com Malinowski, a antropologia se torna uma "ciência" da alteridade que vira as costas ao empreendimento evolu­cionista de reconstituição das origens da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada cultura. O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas é que os costumes dos Trobriandeses, tão profundamente diferentes dos nossos, têm uma significação e uma coerência. Não são puerilidades que testemunham de alguns vestígios da humanidade, e sim sistemas lógicos perfeitamente elabo­rados. Hoje, todos os etnólogos estão convencidos de que as sociedades diferentes da nossa são sociedades humanas tanto quanto a nossa, que os homens e mulheres que nelas vivem são adultos que se comportam diferentemente de nós, e não "primitivos", autômatos atrasados (em todos os sentidos do termo) que pararam em uma época distante e vivem presos a tradições estúpidas. Mas nos anos 20 isso era propriamente revolucionário.

 

3) A fim de pensar essa coerência interna, Malinowski elabora uma teoria (o funcionalismo) que tira seu modelo das ciências da natureza: o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como fun­ção a de satisfazer à sua maneira essas necessidades funda­mentais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (eco­nômicas, políticas, jurídicas, educativas...), fornecendo res­postas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas necessidades.

 

 



[1] Da qual Radcliffe·Brown e Malinowski tirarão as consequências teóricas: não é mais possível opor sociedades "simples" e “complexas", sociedades "inferiores" evoluindo para o “superior", sociedades "primitivas" a caminho da “civilização". As primeiras não são formas de organizações originais das quais as segundas teriam derivado.

[2] Sobre a relação da cultura, da língua e do etnólogo, cf. particular­mente, após Boas, Sapir (1967) e Leenhardt (1946).

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